O JUIZ PORTUGUÊS ACABOU COM TODOS ARGUMENTOS DO JUIZ SERGIO MORO
Há
tempos, antes da eleição de Bolsonaro, falava com juízes brasileiros sobre a
Operação Lava Jato, o juiz Sérgio Moro e a perigosa exposição do judiciário a
dúvidas sobre a condenação do ex-Presidente Lula. Era evidente o desconforto
desses juízes com as atitudes de Moro, não na condução do processo – aí todos
me afiançaram que é um juiz competente e íntegro – mas no excessivo
protagonismo que o fez andar pelo mundo fora a falar do caso. Qualquer pessoa
sabe que isso é errado. Quanto mais atenção pública há sobre o caso, mais o
juiz deve estar calado.
A ida de Moro para o governo do Brasil é errada sob todos os
pontos de vista. É errada para Bolsonaro porque não podia ter dito em campanha
que Lula vai apodrecer na cadeia e depois levar para ministro o juiz que o
prendeu e condenou. É errada para Moro porque justificar esse acto como uma
forma de dar continuidade à sua militância anticorrupção é inaceitável – a
única causa em que os juízes podem militar é a da Justiça e da Lei. E é errada
para o sistema político porque uma democracia não pode viver sob a suspeita de
ter havido interferência ilegítima dos tribunais numa eleição presidencial.
O que acabo de dizer não envolve nenhum juízo de valor sobre
a eleição de Bolsonaro nem sobre as suas qualidades para ser presidente e muito
menos sobre a culpabilidade de Lula. Como juiz, o que me interessa relevar é o
dano causado na imagem de imparcialidade da justiça e no princípio da separação
de poderes, precisamente no momento em que esses valores deviam ser mais protegidos,
quando a acção dos tribunais incide sobre pessoas que exercem cargos políticos.
Em Portugal não há memória de tamanha promiscuidade. Meneres
Pimentel só foi nomeado juiz do Supremo Tribunal de Justiça anos depois de ter
sido ministro da justiça e da reforma administrativa. Laborinho Lúcio tinha
sido juiz e procurador, mas quando foi para ministro da justiça estava há
muitos anos afastado dos tribunais. Fernando Negrão cessou a carreira de juiz
para ir para a política. A actual ministra da justiça, Francisca Van Dunem, fez
a sua carreira toda no Ministério Público e acabou por tomar posse como juíza
do Supremo Tribunal de Justiça quando já estava em funções no governo. Há, além
disso, uma tradição de presença de juízes noutras funções governamentais,
nomeadamente como secretários de estado, directores-gerais, chefes de gabinete,
assessores e adjuntos.
Nenhuma destas situações é comparável com a de Moro no
Brasil. Nenhum juiz foi para um governo depois de ter proferido decisões em
processos de tanta relevância e actualidade política. E não acredito que um
caso desses pudesse acontecer em Portugal. Nenhum político ousaria convidar
para ministro um juiz que tivesse acabado de prender um candidato numa eleição
presidencial; nem alguma vez um juiz se atreveria a ir para ministro nessas
circunstâncias.
Mas a verdade é que a lei não proíbe isso, como devia. O
Estatuto dos Magistrados Judiciais em vigor permite que juízes ocupem cargos
políticos no Governo, mediante autorização do Conselho Superior da Magistratura,
que em regra é concedida. Mais grave ainda, no Estatuto que está neste momento
em revisão, prevê-se que o exercício de funções como membro do Governo no
Ministério da Justiça passe até a ser equiparado a outras funções exercidas por
juízes em comissões de serviço de natureza judicial, como, por exemplo, as de
juiz presidente de tribunal ou de inspector judicial. Esta solução não tem pés
nem cabeça. Não tem o mínimo sentido equiparar funções típicas de juiz,
exercidas no quadro da orgânica judiciária, com funções iminentemente
políticas, exercidas num quadro de subordinação e confiança partidária.
Os juízes reprovam essa possibilidade. O Compromisso Ético
que aprovaram em 2008 diz o seguinte: “o juiz, para preservar a sua
independência e imparcialidade, rejeita a participação em actividades políticas
ou administrativas que impliquem subordinação a outros órgãos de soberania ou o
estabelecimento de relações de confiança política”. Isto é que está certo.
Quanto menos confusão houver entre política e justiça, melhor para a sistema
político democrático e melhor para o cidadão.
*Manuel Soares é presidente da Direcção da Associação
Sindical dos Juízes Portugueses. Originalmente publicado pelo jornal Público,
de Portugal.
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